Uso de cloroquina em COVID-19: análise crítica em três partes

Resenha dos artigos:
Gautret P, Lagier JC, Parola P, Hoang VT, Meddeb L, Mailhe M, Doudier B, Courjon J, Giordanengo V, Vieira VE, Tissot Dupont H, Honoré S, Colson P, Chabrière E, La Scola B, Rolain JM, Brouqui P, Raoult D. Hydroxychloroquine and azithromycin as a treatment of COVID-19: results of an open-label non-randomized clinical trial. Int J Antimicrob Agents. 2020 Jul;56(1):105949. doi: 10.1016/j.ijantimicag.2020.105949. Epub 2020 Mar 20. PMID: 32205204; PMCID: PMC7102549.

Zhaowei Chen, Jijia Hu, Zongwei Zhang, Shan Jiang, Shoumeng Han, Dandan Yan, Ruhong Zhuang, Ben Hu,  Zhan Zhang. Efficacy of hydroxychloroquine in patients with COVID-19: results of a randomized clinical trial. doi: https://doi.org/10.1101/2020.03.22.20040758. Posted April 10, 2020.

I. Uso de cloroquina em Covid-19, parte 1: análise crítica do estudo de Gautret e col.

O primeiro estudo com resultados positivos em pacientes (ou seja, sem considerar estudos in vitro) é um trabalho francês, de Gautret e col., publicado em 20/03/2020 na Int J Antimicrob Agents. O trabalho é um estudo não randomizado, onde, inicialmente, 26 pacientes seriam analisados no grupo cloroquina + azitromicina, e 16 pacientes no grupo controle. O desfecho planejado era a negativação do PCR para detecção da presença do vírus em material da nasofaringe após 6 dias de tratamento.

O resultado principal do estudo mostrou que, após 6 dias, 100% dos pacientes usando cloroquina + azitromicina atingiram cura virológica (PCR negativo), ao passo que, no grupo usando apenas cloroquina, 57% tiveram o desfecho favorável, e, no controle, apenas 12,5% (p<0,001 na comparação). Ainda que esses resultados sejam potencialmente promissores, diversas ressalvas precisam ser feitas:

1. O estudo não é randomizado, o que gera potenciais vieses pela incerteza sobre a comparabilidade entre os grupos tratamento e controle. Aliás, é extremamente provável que os pacientes não fossem comparáveis. A média de idade tinha diferença de 14 anos entre os tratados e controle, o que é bastante expressivo. Ademais, os pacientes do grupo cloroquina e controle eram de instituições diferentes, as quais possivelmente tinham expertise diferente no manejo desses pacientes.

2. O desfecho analisado é intermediário/substituto, ou seja, ele não garante que o paciente com o PCR negativo tenha tido melhora clínica.

3. A análise dos dados incluiu apenas 20 pacientes no grupo intervenção, sendo que entre os motivos de exclusão temos 3 pacientes que foram para a UTI e 1 paciente que foi a óbito. Essas exclusões são um completo contrassenso em termos de hierarquia de desfechos: pacientes com desfechos clínicos ruins foram excluídos, fazendo-se uma análise microbiológica nos pacientes justamente que não tiveram desfechos clínicos adversos. Como não há nenhum relato de perda no grupo controle, poderíamos mudar completamente a inferência dos dados, e dizer que 4 dos 26 pacientes inicialmente alocados na cloroquina tiveram desfechos clínicos ruins, ao passo que 0 dos 16 controles tiveram tais desfechos.

4. Mesmo observando-se apenas o desfecho virológico, o mesmo tem problemas. O grupo cloroquina + azitromicina tinha carga viral mais baixa no início do estudo, sugerindo que estivessem em um momento mais tardio da infecção, e, portanto, mais próximos de atingir cura virológica simplesmente pelo passar do tempo. Ademais, os PCRs não foram realizados todos os dias em 75% dos pacientes no grupo controle e em apenas 20% dos grupos cloroquina, sugerindo assimetria na coleta de dados. E, finalmente, para esses dados de coletas faltantes, foi usado algum método de imputação, ou seja, os dados apresentados não são totalmente aferidos, parte foi imputada.

O estudo tem outros problemas, valendo a pena a leitura da crítica publicada no Annals of Internal Medicine (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/32227189). As críticas à qualidade do artigo são tão grandes que, alguns dias após a sua publicação, a sociedade mantenedora do periódico que publicou o artigo emitiu uma nota, comentando que o estudo não atingia os padrões científicos esperados (https://www.isac.world/news-and-publications/official-isac-statement). Ou seja, ainda que a revista tenha publicado o artigo, eles na prática não estão endossando os resultados.

II. Uso de cloroquina em Covid-19, parte 2: análise crítica do estudo de Chen e col.

O primeiro ensaio clínico randomizado com dados positivos é o de Chen e col., o qual está disponível desde 31/03/2020 apenas como “pre-print”, ou seja, ainda não foi revisado e analisado criticamente por nenhum periódico da área biomédica.

Este estudo, diferente do estudo de Gautret, foi randomizado, o que por si só já confere ao estudo um status de maior qualidade científica. Os pacientes foram alocados para receber hidroxicloroquina (HCQ) ou tratamento padrão (grupo controle). Diferentemente do estudo de Gautret, a azitromicina não foi utilizada no grupo intervenção.

O total de pacientes incluídos foi de 62, sendo 31 alocados para cada grupo (HCQ ou controle). A média de idade foi de 44 anos, e 53% eram mulheres. Os desfechos clínicos reportados são de febre e tosse, cujas resoluções foram de 1 e 1,1 dias mais rápidos no grupo HCQ, respectivamente (p<0,01 para ambas as comparações). Apenas 4 pacientes progrediram para doença grave, todos no grupo controle. O estudo não apresenta teste estatístico para essa comparação, então, eu mesmo calculei, e o valor p foi de 0,11, ou seja, sem significância estatística. O último desfecho apresentado é a melhora da tomografia de tórax no 6º dia, a qual ocorreu em 80% dos pacientes da HCQ e 54,8% do grupo controle. O estudo reporta um valor p de 0,047, porém, não fica totalmente claro se seria para essa comparação. Refiz o cálculo, e o valor p foi de 0,055 – ou seja, ainda que limítrofe, não atingiu significância estatística.

Seguem as principais críticas ao trabalho:

1. Ainda que o estudo tenha sido randomizado, um item adicional de qualidade, o cegamento, não está adequadamente explicado. Em uma parte do artigo, é dito que nem os pesquisadores nem os pacientes sabiam em qual grupo (cloroquina ou controle) os mesmos estavam. Porém, para atingir isso em um estudo de fármacos, é necessário que o grupo controle receba placebo, o que não é descrito no trabalho. Caso o estudo não tenha sido de fato cegado, desfechos que não sejam totalmente objetivos podem ser enviesados.

2. De acordo com o protocolo do estudo[1], seriam recrutados 300 pacientes, sendo 200 para HCQ (com dosagens diferentes) e 100 para o grupo controle. Em nenhum local do artigo é falado o porquê de estarem sendo relatados apenas 62 pacientes.

3. Também chama muita atenção que, no protocolo do estudo, os desfechos listados eram apenas negativação do RNA viral e tempo de recuperação de células T. No manuscrito disponibilizado até agora, paradoxalmente, esses desfechos não são reportados, e sim outros desfechos, não listados no protocolo publicado. Isso sugere que os desfechos pré-definidos não foram favoráveis (e por isso não reportados), e que, de todos os desfechos coletados no estudo (impossível saber quantos), justamente os únicos positivos foram os até agora relatados. Isso aponta para a possibilidade de que os resultados positivos sejam um tanto fortuitos, com viés de relato seletivo.

Os desfechos clínicos de tosse e febre, com redução de 1 dia na velocidade de resolução, não tem maior magnitude clínica. O desfecho de progressão para doença grave não teve significância estatística na comparação entre os grupos. E, finalmente, o desfecho radiológico, além de ter significância estatística questionável, não está adequadamente descrito sobre como foi mensurado, e tampouco há consenso que a melhora na tomografia após 6 dias se correlaciona com melhora clínica.

III. Uso de cloroquina em Covid-19, parte 3: discussão e onde estamos

Nos meus dois artigos anteriores, apresentei os dois principais estudos clínicos positivos para o uso de cloroquina (CQ) ou hidroxicloroquina (HCQ), associadas ou não à azitromicina, para o tratamento de Covid-19. Além das críticas apresentadas anteriormente aos estudos, vários pontos adicionais precisam ser comentados, para que eu possa fazer um fechamento sobre onde nos encontramos agora, em termos de evidência científica para o uso dessas medicações.

1. Dois outros estudos clínicos, ambos já publicados, trouxeram resultados negativos. O primeiro teve como desfecho apenas a negativação virológica[2]. Foram incluídos 11 pacientes, todos tratados com HCQ + azitromicina. Um paciente faleceu, sendo os demais 10 avaliados para negativação de PCR viral em swab nasal após 5 a 6 dias do tratamento. Apenas 2 deles (20%) atingiram tal desfecho. Esse resultado é diametralmente oposto ao grupo HCQ + azitro do estudo de Gautret, onde foi reportado 100% de negativação viral em 6 dias.

2. O segundo estudo negativo foi um ensaio clínico randomizado, publicado em chinês, o que me permitiu avaliar apenas o resumo do trabalho[3]. Foram randomizados 30 pacientes, 15 para o grupo HCQ e 15 para o controle. Após 7 dias do início do tratamento, praticamente todos os pacientes tiveram swab nasal negativo para o vírus: 13 na HCQ e 14 no controle, sem diferença significativa entre os grupos. Os demais desfechos também não tiveram diferença entre os grupos.

3. Tem sido visto com muita frequência na mídia relatos de pacientes (ou um grupo de pacientes) que teria “se curado” após usar CQ ou HCQ, associada ou não à azitromicina. Não podemos esquecer, porém, que em torno de 80% dos casos, a infecção é pouco sintomática e de resolução espontânea[4]. Ou seja, a maioria dos pacientes, independente do tratamento que fizer, irá melhorar, e atribuir a “cura” à CQ/HCQ é bastante especulativo.

4. Os efeitos antivirais da cloroquina são conhecidos há décadas. A despeito disso, ela jamais conseguiu mostrar eficácia em estudos conduzidos em outras doenças virais. No estudo mais bem desenhado, um ensaio clínico para prevenção de influenza, com mais de 1.500 pacientes, não houve nenhuma diferença entre os grupos CQ e controle[5]. Na MERS, que também é causada por um tipo de coronavírus, não foi visto efeito mesmo in vitro[6]. E, finalmente, em infecção por Chikungunya, ainda que a CQ tenha mostrado eficácia in vitro, estudo em humanos mostrou que ela acabou retardando a resposta imune à infecção, o que poderia ser inclusive deletério[7].

Dito tudo isso, a conclusão que chego é a mesma que importantes revistas médicas tiveram nos últimos dias[8]: há muito mais dúvidas do que certezas sobre a eficácia da cloroquina para Covid-19, e o seu uso em larga escala atualmente só se justifica pela grande difusão de informações de qualidade científica duvidosa pela grande mídia, culminando com pressão da população e inclusive de parte da classe política para o seu uso disseminado.

É possível que ela funcione? Sim, com certeza! E é por isso que, no momento, há dezenas de ensaios clínicos sendo realizados em todo o mundo, inclusive no Brasil, para verificar se realmente o medicamento é eficaz (ótima revisão disto aqui[9]). Esse, na verdade, é o cenário usual para a realização de um ensaio clínico randomizado: quando estamos diante da incerteza. Mas se existe chance de funcionar, e a doença pode ser fatal, por que não deveríamos estar usando em todo mundo? A resposta aqui não é tão simples. Ainda que os eventos adversos da cloroquina não sejam muito frequentes, eles existem, e o mais temido talvez seja a ocorrência de arritmia cardíaca com potencial fatal. Considerando que há vários relatos de dano miocárdico em pacientes com Covid-19[10], é possível que a frequência de arritmias fatais seja maior nesses pacientes do que nos grupos onde a cloroquina foi mais amplamente estudada, em doenças reumatológicas e malária. Dito isso, não considero errado que a medicação seja usada, mas certamente deve ser feito um acompanhamento do paciente considerando os eventos adversos, e precisa ficar bastante claro tanto para o médico como o paciente que o uso da medicação é praticamente experimental, não havendo, de forma alguma, comprovação da eficácia da mesma.


[1] http://www.chictr.org.cn/showprojen.aspx?proj=48880

[2] http://atomicfifteen.com/~TREATMENT_INEFFECTIVE_HYDROXYCHLOROQUINE.pdf

[3] http://www.zjujournals.com/med/CN/10.3785/j.issn.1008-9292.2020.03.03

[4] https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2762130

[5] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/21550310

[6] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/29566060

[7] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/29772762

[8] https://www.bmj.com/content/369/bmj.m1432 e https://annals.org/aim/fullarticle/2764065/rush-judgment-rapid-reporting-dissemination-results-its-consequences-regarding-use

[9] https://oxfordbrazilebm.com/index.php/2020/04/10/rapid-review-hidroxicloroquina-covid19/

[10] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/32270559

Elaborado por:
Rodrigo Antonini Ribeiro
Data da Resenha:
20/04/2020
Eixo Temático:
Doenças Infecciosas e Tropicais
Eixo metodológico:
Revisões Sistemáticas da Literatura

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